Atuais mudanças na Lei de Diretrizes e Bases – LDB são contradição arriscada para os avanços sociais e humanos

Por Carol Zanoti, consultora em educação integral do Instituto Auá, e Ondalva Serrano, fundadora e conselheira do Instituto Auá

O Estatuto da Criança e do Adolescente significou uma importante ruptura frente à legislação anterior representada pelo Código de Menores – Lei nº 6697/1979 –quando adotou como referencial o princípio da Proteção Integral em oposição ao princípio da Situação Irregular, que vigorava na legislação revogada. Estas duas doutrinas estão assentadas em princípios bastante opostos.

Pelo princípio da Situação Irregular, os menores são entendidos apenas como sujeitos de direito, merecendo a consideração judicial quando se encontram em uma situação caracterizada como “irregular” pela lei. Neste caso, só há respaldo jurídico para o menor que se encontra em situação irregular, enquanto os demais não são sujeitos de tratamento legal.

Já o princípio da Proteção Integral avança na garantia dos direitos fundamentais calcado em importantes documentos internacionais: como a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a Declaração Universal dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1959, as Regras Mínimas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude das Nações Unidas, de 1985, as Diretrizes para a Prevenção da Delinquência Juvenil das Nações Unidas, de 1988, e a Convenção sobre o Direito da Criança das Nações Unidas, de 1989, aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1990.

A chamada Doutrina da Proteção Integral foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 227 da Constituição Federal. De forma precursora, a Constituição passa a declarar que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Basicamente, a Doutrina da Proteção Integral adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente assenta-se em três princípios, a saber:

  • Criança e adolescente como sujeitos de direito – deixam de ser objetos passivos para se tornarem titulares de direitos.
  • Destinatários de absoluta prioridade.
  • Respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento.

Assim, as crianças e os adolescentes ganham um novo “status”, como sujeitos de direitos e não mais como menores objetos de compaixão e repressão, em situação irregular, abandonados ou delinquentes.

Só através da educação universalizada e do potencial dos processos educativos é que este objetivo de exercício de direitos das crianças e dos adolescentes poderá alcançar impactos positivos. E nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Nº 9.394, de 1996, surge como a principal normatização norteadora destes processos, juntamente ao Plano Nacional de Educação.

Neste contexto, é importante nos posicionarmos contra as alterações realizadas em abril deste ano na LDB, que ferem os princípios norteadores do Estatuto da Criança e do Adolescente.

As atuais alterações retiram a obrigatoriedade do ensino fundamental gratuito, a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio, a universalização do ensino médio gratuito, o atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, o atendimento gratuito em creches e pré-escolas, o atendimento ao educando no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Todas as alterações estão previstas no artigo 4 do Projeto de Lei que altera a LDB.

E igualmente grave, tem ainda estes itens alterados: deixam de ser obrigatórias as disciplinas de Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física, Música e também de Cultura Afro-brasileira.

Não bastassem todas estas mudanças que implicam em perda da qualidade do processo educativo das crianças e dos adolescentes no país, as alterações deverão ampliar os cenários de abandono e negligência, o que é uma contradição marcante frente aos princípios preconizados pela Constituição Federal e as demais legislações já citadas.

Assim, o Instituto Auá, posiciona-se claramente contra as mudanças na LDB e propõe como resposta a esse cenário de desconstrução de conquistas sociais e humanas no país o fortalecimento dos conselhos de direitos e dos conselhos consultivos nas esferas federal, estadual e municipal. Somente através da atuação paritária entre sociedade civil organizada e poder público, será possível qualificar o controle social e ocupar os devidos espaços coletivos, visando inibir as alterações gritantes e de violação de direitos que se encontram em curso no Brasil.

A participação da sociedade civil nos espaços e fóruns de consolidação de nossas leis é urgente. Convocamos a todos a participar e fortalecer os Conselhos de Direitos e os Conselhos Consultivos, nas esferas municipal, estadual e federal, como forma de enfrentar este processo de desregulação dos direitos sociais e humanos no país.

 

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