O desafio de trabalhar a terra frente à falta de gestão da crise hídrica

Por Bely Pires, diretora do Instituto Auá

O desafio de trabalhar a terra frente à falta de gestão da crise hídrica

Por Bely Pires, diretora do Instituto Auá
Ricardo Sato, da Federação de Agricultura do Estado de São Paulo (FAESP)

No boletim de maio de 2015 abordamos a questão do serviço ecossistêmico de provisão de alimentos e deixamos clara a posição contrária do Instituto Auá sobre a transgenia e a favor da agroecologia. Agora, abordaremos o serviço ecossistêmico de produção de alimentos associado ao serviço de provisão de água numa área específica da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo (RBCV), o Alto Tietê.

O Alto Tietê é um sistema formado pelos rios Tietê, Claro, Paraitinga, Biritiba, Jundiaí, Grande, Doce, Taiaçupeba-Mirim, Taiaçupeba-Açu e Balainho. O tratamento é realizado na Estação Taiaçupeba e atinge 10 mil litros por segundo, responsáveis pelo abastecimento de cerca de 3,1 milhões de pessoas da Zona Leste da capital e nos municípios de Arujá, Itaquaquecetuba, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Suzano, Mauá, Mogi das Cruzes, parte de Santo André e dois bairros de Guarulhos (Pimentas e Bonsucesso).

Veja a localização da bacia do Alto Tietê no Estado de São Paulo e na RBCV:

bacias hidrograficas

Esta região é conhecida por sua importância para o abastecimento de água na região metropolitana de São Paulo e no território da RBCV, sendo responsável pela produção de 30% das verduras e legumes consumidos no Estado de São Paulo, a partir de uma agricultura de base familiar. Boa parte dessas famílias, de origem japonesa, cultiva há décadas a terra e está acostumada às adversidades climáticas e à histórica falta de apoio do governo para o desenvolvimento e manutenção das lavouras. Neste ano, porém, a dúvida em relação a continuidade da produção vem do risco iminente de ficarem sem água.

Esses pequenos produtores locais, que há 40 anos ocupam essa área de provisão de água, não usavam inicialmente os agrotóxicos que sabiam ser desnecessários, principalmente os mais antigos, de origem japonesa. Com o tempo e a falta de orientação por meio dos programas de extensão rural, foram estimulados a usar defensivos químicos. Hoje, isso representa um problema considerável para a qualidade da água desse sistema produtor.

Mas, ao mesmo tempo, eles foram se tornando cada vez mais eficientes no uso da água, a ponto de atualmente serem responsáveis pela captação de apenas 3% do volume total disponibilizado para consumo, conforme dados do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE, da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo). Isso para um grupo expressivo de 6 mil agricultores, o que contraria uma estatística bastante divulgada sobre o uso da água pela sociedade, na qual a população seria responsável por 10% do consumo, a indústria 20% e a agricultura 70%.

Exatamente por causa deste percentual exagerado do uso da água atribuído à agricultura, o setor é bombardeado por críticas infundadas e surge para a sociedade como a vilão da crise hídrica na RMSP. Para se fazer justiça, é preciso reverter esse quadro com uma política de transparência e esclarecimento à população.

É importante destacar, ainda, que no ciclo hidrológico, cerca de 70% da água das chuvas passa pela evapotranspiração, processo na qual ocorre a perda de água do solo por evaporação e a perda de água da planta por transpiração. Por isso que se diz, equivocadamente, que a agricultura é grande consumidora de água, como se fosse possível efetivamente consumir 70% da água das precipitações.

O volume realmente captado pelas plantas não chega a 10%. A maior parte, ao se infiltrar no solo, retorna ao lençol freático, rios e cursos d’água, voltando a abastecer o sistema. Portanto, a agricultura não é a vilã do consumo. São nas áreas rurais que ocorrem os processos de infiltração, escoamento superficial, recarga de lençóis e armazenamento de água. A agricultura familiar contribui positivamente para o equilíbrio hídrico, gera excedentes para o consumo nas cidades e presta outros serviços ecossistêmicos. Sem receber nada em troca, e ainda garantindo a alimentação de milhares de brasileiros.

Agora, em meio à crise hídrica severa, esses produtores têm sido vistos por setores governamentais, responsáveis pelo abastecimento público, e por parte da população desinformada, como os grandes consumidores de água potável. E mesmo sabendo do baixo volume de uso de água pelos produtores rurais do Alto Tietê, o governo do estado de São Paulo lançou o decreto de restrição hídrica nº 61.117, de fevereiro de 2015, impedindo a irrigação, com fiscalização apoiada pela Polícia Militar.

Fiscais foram às propriedades rurais e lacraram as bombas de acesso ao uso da água pelos produtores, que de fato não estão regularizados em relação à outorga para o uso da água. Essa regularização está sendo feita lentamente, mediante o problema instalado, mas que tem um custo atual de valor incompatível com os ganhos desses produtores.

No Alto Tietê, o cultivo de hortaliças emprega de três a seis pessoas por hectare. A título de comparação temos a cana-de-açúcar, que gera no máximo um emprego por hectare. A agricultura paulista tem na produção de hortaliças, seu principal alicerce. E o abastecimento da capital é totalmente dependente dessa agricultura.

altotiete

Até o início do outono, quem ajudou foi a própria natureza, com chuvas generosas para a agricultura local. Agora a estória é outra, com o período da seca se instalando, o que vem por aí não vai ajudar muito a agricultura da região.

Obras para diminuir o problema do desabastecimento de água na grande São Paulo, como a transposição das águas dos Rio Guaió, tem causado indignação aos pequenos agricultores do Alto Tietê. A obra, orçada em R$ 28,9 milhões, vai implantar nove quilômetros de adutoras no Rio Guaió, que nasce em Mauá, no ABC Paulista, passa por Suzano, Ferraz de Vasconcelos e deságua no Tietê. Com a obra, serão bombeados 120 metros cúbicos na estação elevatória. Em seguida, ela será lançada no Ribeirão dos Moraes, afluente do córrego Taiaçupeba-Mirim, por meio de tubulações, e depois direcionada naturalmente para a Represa Taiaçupeba.

Concluído o percurso de 9 quilômetros, o governo do estado anuncia a captação de 1 mil litros/segundo, mas não avalia as consequências dessa retirada para os produtores. O sacrifício será grande por parte de todos que trabalham às margens ou nos córregos secundários, a ponto de haver o risco de inviabilização da produção agrícola.

Quem vive na região sabe que o rio apresenta a vazão anunciada apenas em períodos de chuva intensa, como no verão, mas no inverno isso não acontece, e olha que ele nem começou… Além disso, embora essa obra ocorra em Áreas de Proteção Permanente (APPs), está sendo executada sem o respectivo Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (EIA/RIMA), obrigatórios por lei numa área como a descrita.
Os produtores também estão preocupados com os investimentos em obras desse tipo na região, pois elas parecem não apresentar a devida preocupação com a qualidade da água. É o caso da obra que vai transferir 4 mil litros de água por segundo do Braço Rio Pequeno para o Braço Rio Grande da Billings, reservatório reconhecido pela alta poluição de suas águas, depois transferidas para o rio Taiaçupeba, chegando à represa Taiaçupeba, já na região do Alto Tietê, onde será tratada (veja infográfico em http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,obra-na-billings-nao-evita-agua-poluida,1656434). As obras seguem em ritmo acelerado sem análises que atestem a qualidade da água e isso preocupa os agricultores: alguns têm propriedades ao longo do trajeto em que as águas do Rio Grande se misturarão às de boa qualidade utilizada na produção de hortaliças na região do Alto Tietê.

Como se afirmou inicialmente, o Instituto Auá apoia a agricultura orgânica, mas se solidariza com os pequenos produtores do Alto Tietê, que passam por uma crise econômica, ambiental e social delicada. Esperamos poder ajudar essa categoria por meio da disseminação de boas práticas agroecológicas e uso de cisternas, como vem fazendo alguns agricultores orgânicos de Ibiúna, beneficiados pelo empreendimento socioambiental Banca Orgânica, que já foram tema do nosso boletim.

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